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19/10/2008

karl popper e antónio damásio

O capítulo «O problema corpo-mente e o mundo 3», da Busca inacabada de Karl Popper aproxima-se e afasta-se do que veio a ser a teorização de António Damásio. Como exemplos de aproximação, dois: a propriedade e a intensidade com que recorrem à expressão "consciência de si"; a conceptualização da palavra "disposicional", o uso desse conceito, em Damásio mais nítido e completo funcional e biologicamente. Quanto a afastamentos, penso por exemplo numa ausência que me deixou perplexo: ele nunca cita Piaget para verificar estas hipóteses. As leituras de Descartes podem estar na origem de mais uma diferença, levando Popper a um dualismo que prejudica o seu conhecido interacionismo. Porém, quero reportar-me especialmente à colocação relativa dos conceitos de 'mente humana' e 'linguagem humana'. Na p. 263 dessa obra ele fala da "mente humana como produtora da linguagem humana", para a qual temos "aptidões" que "são inatas". Esse inatismo mal definido e a relação directa mente-linguagem parecem-me ultrapassados pelas investigações e hipóteses de Damásio. A partir daí podemos afirmar com segurança que há uma linguagem das imagens anterior à (e suportando a) linguagem verbal. Essa linguagem das imagens pode ser descrita já como uma protolinguagem ou o hipertexto da nossa linguagem verbal. Ela é já um mecanismo de auto-regulação (uso o termo de Piaget, Popper usa "governo doméstico" - p. 262) do organismo, na sua relação com o meio e na sua relação consigo próprio. Apesar de ver a "mente humana como produtora da linguagem humana" Popper vai colocar "a base fisiológica da mente humana" no "centro da fala" (pp. 263-264). Isto apesar de ela ser um dos mais altos "centros de controlo" (de auto-regulação). O facto de na altura não termos o conhecimento que temos hoje de como funcionam a mente e a linguagem terá contribuído para esta espécie de reducionismo fisiológico. Os livros de Damásio, com particular ênfase, nos ajudam a construir uma hipótese e uma visão holísticas, por assim dizer. Não há propriamente centros de fala ou de pensamento, embora haja zonas especialmente activas do cérebro quando pensamos, falamos ou simplesmente formamos imagens. Mas todo o cérebro, ou quase todo, é envolvido, incluindo zonas que pareciam neutras para a questão. Os 'centros' são mais é nódulos principais do processamento final de um grande sistema de auto-produção e Damásio avançou com uma hipótese neurobiológica sem precisar de levar em conta "a linguagem e os objectos do mundo 3" (p. 265). O tal orgão que Popper tanto procurou percebemos então que seja o próprio cérebro a funcionar e interagindo com o corpo. Essas hipóteses desfasadas hoje, como também a teoria dos dois campos ou hemisférios, devem-se aos limites do conhecimento científico da época (ele cita, sobretudo, obras do fim dos anos 60, o que era inevitável, uma vez que a edição revista é de 1975). Mas isso não obscurece as cintilantes intuições do seu raciocínio (uso a palavra intuição fora do debate filosófico sobre o intuicionismo - apenas levando em conta a sua definição etimológica). É o caso dos "dois problemas" em que subdivide "o problema corpo-mente". Os "dois problemas" em que subdivide "o problema corpo-mente" são: o de "uma relação muito íntima entre estados fisiológicos e certos estados de consciência" (julgo que pensava na dor de dentes como exemplo) e "o problema muito diferente da emergência do eu e da sua relação com o corpo" (p. 265). Damásio trata dos dois problemas e desenvolve bastante a reflexão sobre o segundo. Fica-me a curiosidade de saber como Popper reagiria, melhor, pensaria as teorias e os dados trazidos por Damásio e pela sua equipa.